Árbitros de futebol refletem sobre a saúde mental de quem apita jogos no Brasil
Ao contrário de outras atividades profissionais, o debate sobre a saúde mental dos árbitros de futebol ainda é tabu

A conscientização sobre a saúde mental é um dos assuntos mais falados na sociedade contemporânea, sobretudo no futebol. As ações de marketing de clubes e reportagens alertando sobre os riscos de depressão e ansiedade no rendimento dos jogadores de futebol, nos últimos anos, tornou-se recorrente. Mas para os árbitros do esporte nacional, o assunto ainda é tabu, sendo muitas vezes ignorado por federações e mídia.
Na verdade, a situação é assim não só no futebol brasileiro, mas também mundial. Por ser uma autoridade de um esporte com torcedores passionais, o juiz é ensinado a lidar com ofensas (até ameaças de morte) de todas as partes. Mesmo assim, os juízes aprendem a não expor sentimentos e demonstrarem força até quando estão sobrecarregados mentalmente. São poucos os casos que vieram à tona de juízes que lutaram contra a depressão – e um deles é o alemão Babak Rafati.
Filho de pais iranianos, ele nasceu em Hannover em 1970 e iniciou sua vida adulta trabalhando como banqueiro na sua cidade local. Apaixonado por futebol desde a infância, Babak queria isso para sua vida. A oportunidade surgiu quando se tornou árbitro da Federação Alemã em 1997. O bom rendimento nas partidas fez com que apitasse jogos da 2ª divisão em 2000 e, a partir de 2005, da Bundesliga.

A exposição para um público maior em um campeonato de alto rendimento mudou a vida de Babak. Ele apitou mais de 150 partidas do Campeonato Alemão e conseguiu um passo acima em 2008, quando começou a ser escalado para jogos internacionais. Parece que estava indo tudo bem, porém não. O alemão lidava com a pressão de apitar partidas importantes, a alta visibilidade de lances polêmicos e os xingamentos racistas que sofreu por conta da sua descendência iraniana.
A depressão e a ansiedade passaram a fazer parte da vida de Babak. A aflição era tamanha que, em 2011, ele tentou tirar a própria vida antes de um jogo entre Colônia e Mainz. O caso gerou uma repercussão internacional e uma comoção do meia Bastian Schweinsteiger. O atleta alemão escreveu uma carta, abordando o conhecimento da desistência de Babak como juiz, mas que sabia da sua força para se levantar. “Senhor Rafati, na vida você já caiu muitas vezes. E teve de levantar-se muitas vezes também. Desejo-lhe tudo de melhor”, assim terminava.
A recuperação de Babak Rafati demorou muitos anos até se recuperar do estado depressivo. Ele conseguiu dar a volta por cima com o apoio dos médicos e de sua família (principalmente a esposa). Em entrevista, o juiz comentou que precisou de uma consideração da federação alemã.
Atualmente ele conduz palestras sobre conscientização para burnout, bullying e depressão, além de mencionar a pressão por alto desempenho no futebol. Babak também atua como coach mental pessoal de atletas.
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Outro profissional estrangeiro que também ressaltou a pressão externa sofrida foi Ricardo De Burgos Bengoechea. O espanhol apita partidas desde 2011 e recebeu uma grande distinção sete anos depois, o escudo da Fifa. A honra poderia simbolizar tranquilidade, mas foi o contrário. O prestígio alcançado exigia uma maior cobrança e o medo, que colocaria a prova em uma decisão.
Ricardo foi o escolhido para apitar a final da Copa do Rei de 2024/25, disputada entre Barcelona e Real Madrid. Pelo fato de ser Superclásico, a principal notícia antes do jogo poderia ser sobre qualquer um dos times, porém, ele mostrou que um árbitro poderia ser protagonista pela mídia e público, além de polêmicas de arbitragem.
Na coletiva de imprensa, Ricardo assistiu à emissora do Real Madrid transmitir um dossiê de prováveis erros cometidos por ele no passado que teriam prejudicado os merengues. Quando terminou de assistir, o juiz desabafou e trouxe reflexões importantes sobre o impacto do conteúdo. “É preciso entender as consequências que esses vídeos têm. Há redes sociais anônimas que insultam e ameaçam sem qualquer controle”, comentou em lágrimas.
Ricardo Burgos ainda citou o seu filho como exemplo do impacto das reclamações de todos. “Quando seu filho vai à escola e volta chorando porque outras crianças dizem que o pai dele é um ladrão, é algo muito duro. O que eu faço, no meu caso, é tentar educar meu filho para que ele saiba que seu pai é honesto, acima de tudo honesto”.
As situações vivenciadas pelos dois juízes de futebol se encaixam com capítulos de muitos profissionais de apito do futebol brasileiro. Diferente dos erros de jogadores de futebol, nos quais recebem críticas ou piadas, mas que podem entrar em campo na partida seguinte, o juiz de futebol vive uma pressão exacerbada, exigindo uma atuação sem nenhum defeito, porque se tiver, poderá ser colocado na “geladeira” ou rebaixado a apitar partidas de competições menores.
O juiz Ramon Abatti Abel e o fiscal de VAR Ilbert Estevam da Silva foram afastados após polêmica arbitragem no clássico São Paulo x Palmeiras, enquanto Lucas Casagrande e Gilberto Rodrigues Castro Júnior receberam a mesma ordem depois da mesma repercussão no jogo Bragantino x Grêmio.
No Brasil, árbitro de futebol não é uma profissão, e o pagamento pelo trabalho é feito pela partida apitada. De acordo com o Globo Esporte, um árbitro do quadro da CBF recebe R$ 5.250 por jogo na Série A, enquanto um profissional com escudo da Fifa ganha R$ 7.280. Os assistentes e os árbitros de vídeo recebem os seguintes valores: R$ 4.370 (Fifa) e R$ 3.150 (CBF). Nas demais divisões, há a diminuição dos salários. Portanto, o afastamento depois de partidas polêmicas pode prejudicar o mental dos profissionais.
O assunto passou a ser levantado por estudos acadêmicos nos últimos anos (sobretudo depois da pandemia de Covid-19), trazendo dados e análises aprofundados sobre este tema. Cada trabalho dignifica a importância da saúde mental na rotina dos juízes de futebol, abordando doenças como depressão, ansiedade, estresse e burnout. Em relação às duas últimas citadas, poucas dissertações brasileiras falam tão bem sobre este assunto como “Estresse e burnout em árbitros de futebol: Implicações na saúde e desempenho”, escrita no ano de 2022.
O trabalho, produzido por Mayron Gotardo dos Santos para o programa de pós-graduação da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), traz uma reflexão sobre a saúde mental dos árbitros catarinenses. Uma pesquisa aponta que 25,7% dos 175 árbitros da Federação Catarinense de Futebol apresentam alto nível de burnout.
Também vale o destaque para “A consciência do árbitro de futebol sobre a importância do fator psicológico para seu sucesso”, desenvolvido por Gabriel Petrini Rodrigues Cruz, estudante da Universidade Estadual Paulista (Unesp). A dissertação ressalta que o estado emocional pode influenciar no desempenho de um juiz de futebol. A partir deste assunto, o trabalho defende que desenvolvimento das habilidades psicológicas dos profissionais pode levá-los ao sucesso em cada jogo apitado.
Mesmo com as dissertações abordando sobre o assunto, o tema não costuma ser debatido na imprensa, ou até mesmo entre os próprios juízes nacionais. “Quase ninguém debatia. Só pensava, digamos assim, em fazer um bom trabalho e era isso, assim. Nunca se conversou com relação a isso. Nunca houve abertura para um diálogo mais aberto, dessa questão da saúde mental dos árbitros”, relata o ex-juiz gaúcho Márcio Chagas da Silva.
Nascido em 1976 na cidade de Porto Alegre, Márcio sempre se interessou por esportes, tanto que chegou a praticar basquete nos tempos de estudante no Instituto Porto Alegre (IPA) e na Sociedade de Ginástica de Porto Alegre (Sogipa). Ao escolher o curso de Educação Física pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), o porto-alegrense começou a apitar partidas de futebol.
A presença de Márcio Chagas apitando jogos do Campeonato Gaúcho se tornou frequente a partir da primeira década do século XXI. O professor de Educação Física também virou referência como juiz, sendo credenciado como principal profissional do apito do Rio Grande do Sul nos anos de 2008, 2011, 2012, 2013 e 2014. O sucesso se estendeu para fora do estado, sendo escalado para apitar partidas do Campeonato Brasileiro.

O gaúcho Márcio Chagas apitou diversos jogos no Brasil entre 2005 e 2014. (Foto: Reprodução) Contudo, nem todos os capítulos da trajetória profissional do gaúcho eram felizes. Por ser o único juiz negro a apitar jogos do Campeonato Gaúcho, teve que lidar com ofensas racistas de torcedores, principalmente da serra gaúcha. A rejeição era tamanha que Márcio preferia aquecer no vestiário que no campo.
“Eu tinha uma cobrança interna muito maior em qualquer outro lugar. O fato de não ir aquecendo no gramado já era uma tentativa de me preservar. Porque era muito ruim entrar no campo para fazer verificação das redes e já ser hostilizado, rechaçado, xingado gratuitamente”, relembra. Este exemplo era recorrente na vida de Márcio, que mesmo se sentindo solitário pela falta de apoio e consideração, continuava a apitar partidas e ser reconhecido pelo trabalho.
Em março de 2014 veio o capítulo final de sua carreira como árbitro de futebol. Márcio apitou a partida Esportivo x Veranópolis no estádio Montanha dos Vinhedos. No pré-jogo ouviu ofensas racistas e comentou entre seus colegas. O jogo terminou em 3 a 2 para o Esportivo, em um jogo em que não houve expulsão ou pênalti polêmico.
Depois de sair do vestiário, Márcio chegou ao estacionamento do estádio e encontrou seu carro amassado. No momento em que deu a partida, o automóvel engasgou duas vezes. Na terceira e última tentativa, caíram duas bananas do cano de escapamento. O assistente Marcelo Barison ficou assustado.
O Esportivo foi punido no Tribunal de Justiça Desportiva. O clube alviazul perdeu nove pontos, seis mandos de campos e ainda recebeu uma multa no valor de R$ 30 mil. Márcio comenta que não teve suporte emocional da instituição responsável pela organização do Gauchão.
“Eu não tive nenhum apoio psicológico que a Federação Gaúcha tivesse me auxiliado a fazer depois daquele episódio de racismo. Então, para ver o quanto aquilo (a saúde mental do árbitro) não é levado a sério. O juiz é colocado como se fosse um número. Enquanto ele estiver me dando retorno, estiver me dando força satisfatória do trabalho dele, vai indo”, pontuou.
As punições sofridas pela arbitragem poderiam servir como um castigo perante às infrações mal sucedidas. Contudo, esta visão não é compartilhada por todos. Márcio relata que tal medida pode pesar no emocional dos juízes. “Porque automaticamente tu fica no olho do furacão. Se não tem uma estrutura familiar emocional bacana, tu acaba sucumbindo”, desabafa.
Também destaca que o problema não é perceptível apenas no período fora da atuação dentro das quatro linhas. O retorno aos campos de futebol pode significar uma melhora para o rendimento dos profissionais para muitos, mas Márcio Chagas traz um lado importante, nem tanto abordado na maioria dos veículos de comunicação.
“Quando um árbitro erra, põem na geladeira. Afastam ele, sendo que na realidade é muito pior. Quando você afasta aquele árbitro do serviço dele e ele fica duas, três ou até quatro rodadas fora, no momento em que ele voltar, ele retornará pior, sendo muito mais inseguro. E a chance dele errar é muito maior. Então, tinham que achar alternativas e não justificativas para a imprensa”, completou.
Desde o início de sua trajetória profissional, o juiz já tinha uma noção da realidade do futebol brasileiro, que ia além dos grandes jogos transmitidos entre equipes do primeiro escalão do esporte. “Tinha a presença da psicóloga que ela não chamava, mas ela ficava de posição e eventualmente, ela dava um oi assim para ‘tô aqui, né? Se alguém quiser conversar, eu estou à disposição. Né?’ Então, ela sugeriu alguns livros na época, para que a gente lesse. Havia uma preocupação”, destacou.
Mesmo com esse relato, a estrutura submetida na época não era considerada a mais adequada, para ambos os lados. “Era uma psicóloga que atendia todos os hábitos. Então, era um trabalho que sobrecarregava demais uma pessoa e normalmente, ela colocava à disposição sempre a fazer as consultas através de ligações”, completa Márcio.
A responsável por este trabalho foi a psicóloga e pedagoga Marta Magalhães. Especialista na área esportiva, teve uma atuação significativa nos anos 2000, sendo convidada para conversar sobre psicologia do esporte com os árbitros.
Marta participou de um capítulo importante em 2004, quando começou o trabalho da Psicologia do Esporte no Sindicato dos Árbitros do Estado de São Paulo. O presidente da instituição era o juiz Sérgio Corrêa, que se tornou membro da CBF no ano seguinte. Ainda em 2005, foi declarado o presidente da Comissão de Arbitragem.
Dois anos depois, Sérgio convidou Marta para assumir um trabalho junto aos árbitros e árbitros assistentes do Brasil. Marta cumpriu a função durante 15 anos e, hoje aposentada, continua atuando no seu consultório.

A psicóloga Marta Magalhães iniciou trabalho terapêutico com árbitros em 2007 (Foto: Reprodução) Verminosos por Futebol – Houve resistência no início do trabalho?
Marta Magalhães – Depois da pandemia, isso diminuiu muito. Mas, naquela ocasião, eles passavam super educados, gentis, mas passava longe, desviavam. Porque se fosse visto perto da psicóloga, ia aparentar vulnerabilidade, fraqueza. Então, a partir do momento que eles começam a entender que o psicólogo tem o lugar de sigilo, de cuidado, de apoio, de acompanhamento, do bem-estar dele enquanto pessoa e a partir daí, a qualidade do desempenho e da excelência na sua atuação, então, a partir daí, ele começa a se vincular E a partir daí ele começa a dar espaço para que o preparo mental entre em ação.Verminosos – Foi fácil esse entendimento?
Marta – Imagina. Você está no Brasil. Vê se lá fora a arbitragem tem esse volume de comentaristas e de BOs que dá aqui no Brasil. Não tem. Todos os profissionais têm acertos e têm erros, todos. Porém, se o jogador cometer um erro, ele não deixa de receber salário. Ele vai no banco numa semana, na outra, ele tá jogando. Um árbitro, se tem um erro, ele fica jogos, meses, anos fora, ele não recebe um centavo. É este o grande problema. Tem mais uma coisa, a cultura da psicologia dentro da arbitragem ainda não é efetiva. Eu trabalhei de 2007 a 2022. Em 2022 me aposentei, saí, continuo hoje no meu consultório, continuo hoje nas consultorias de clubes, aulas e atendimentos. Você acha que compreende aqui do lado de fora. Mas quando você está lá no dia a dia, você começa a entender que tem muito mais coisa. Então, quem tá entrando agora vai demorar no mínimo de três a quatro anos para montar um alicerce deste trabalho.Verminosos – Houve um aumento do contato dos juízes que entraram em contato contigo?
Marta – Sim. Existe sim um aumento significativo da procura, porque também houve uma coisa: se você entrevistou o Márcio, você deve ter ouvido que no começo ninguém me conhecia. Eu trabalhava com a ginástica, com os jogadores, com o judô, com corrida, e na arbitragem, eu não estava ali. À medida que eles vão compreendendo que o meu papel ali é ajudá-los, apoiá-los, acompanhar e ajudá-los a preparar seu pré-jogo, durante jogo e pós-jogo, sim, existe, vai aumentando o número. Mas ainda assim, aí não vou falar só de árbitros, de todos os segmentos, inclusive jornalistas esportivos que eu também atendo. No fundo, ele diz: “Não preciso”, porque no fundo ele tem medo de acessar o que tá lá dentro e ele não sabe resolver. Na verdade, processo terapêutico, já chamei processo, não é do dia para a noite, não é no estalar de dedos. Então isso demora um tempo.Verminosos – A pandemia e o VAR deixaram efeitos psicológicos nos juízes?
Marta – Eu acho que isso teve. Alguns outros entenderam que isso ia acabar com a graça do futebol, que aí começou a ter aquelas piadinhas, não é mais futebol raiz, é futebol Nutella, né? E a arbitragem vem justamente quebrando aquilo que eu te disse lá no começo, falando: “Olha, a regra é assim”. Nós temos quatro momentos para intervir. E aí quando veio VAR, a torcida não entendendo de regra, queria que tivesse intervenção o tempo todo. Uhum. E isso não acontece. Agora nós estamos num outro momento que é o desafio. Vai ter história também. Porque nós temos um lado de uma paixão absurda e são duas torcidas. É um único árbitro nesse meio. Nessas duas torcidas, esse único árbitro não vai agradar grego e troiano. Claro. É um ditado popular. Então, a arbitragem também erra.// Categorias
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